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O Piano

17 Apr

O piano soava triste, enchendo a casa com uma melodia de mágoas. Era um choro inquieto, tocante. As paredes, mudas de respeito, escutavam o gemido assaz sofrido que melancolizava o salão, calando-se perante a dor das teclas brancas e pretas que, pausadamente, se moviam ao toque das mãos finas e pálidas de uma mulher.

A pianista debruçava o corpo sobre o piano, qual abraço unificador, formando o cordão que imiscui músicos e música e que os tornam num só. Piano e pianista eram partes de uma essência una, a essência que define a arte das notas musicais.

De cabeça curvada e olhos fechados, com a proximidade singular dos que se amam e conhecem, a pianista sorria misteriosamente para o piano. Não era um sorriso logicamente compreensível, os sorrisos não existem para serem lógicos. Mas a pianista sorria, sorria ilogicamente como todos os artistas, dotados dessa aparente falta de razão que tanto os engrandece, por amarem incondicionalmente a sua arte. E todos sabem que amar não obedece a uma conduta logicamente regrada. Pena que não se ame mais! Pena que não se seja mais ilógico.

O piano soava triste. E, ainda assim, a mulher sorria.

Era o sorriso de uma pianista que amava um piano. Era o sorriso de uma mulher que amava uma parte de si. Era o sorriso de um ser humano realizado. E quantos de nós sorriem como as tantas pianistas que amam pianos?

Quantos de nós sorriem?

O piano soava triste. E com ele uma pianista sorria.

Sorria uma mulher feliz.

Samuel Pimenta escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Quando tombam as fortalezas de um poder fugaz

20 Mar

«A melhor fortaleza que existe está em não ser odiado do povo», disse Maquiavel sobre os príncipes de uma Europa quinhentista, essa Europa antiga que só se conhece nos amarelados livros da História. Disse Maquiavel que «ainda quando o príncipe tenha fortalezas, de nada servirão elas se o povo o odiar». Sábio que foste, Nicolau Maquiavel. Sábio que és.

Tunisinos, egípcios, líbios, marroquinos, sudaneses, iemenitas, bareinitas, argelinos, sauditas. Povos que conhecem a dor desse garrote a que espíritos iluminados (ou ainda mais sombrios que as sombras) chamam de outras senhoras e coisas que o valham. Ditaduras, gritam os povos sem temor! Liberdade, gritam os sonhadores a quem a voz não lhes é silenciada nem por intimações e balas e torturas, essas extensões da mão-de-ferro de regimes que nada têm de valoroso e democrático. Basta, gritam os seres mais humanos que os humanos que os governam, como se inspirados por Almada Negreiros gritassem morte aos dantas que os oprimem. O mundo está a mudar.

Os povos da Terra despertam, ansiando liderar o seu próprio destino. Querem libertar-se das imundícies e dos caprichos do poder que, sobranceiro, os vigia. Querem libertar-se da privação de um bem que, por mais exíguo que o façam parecer, é o maior bem que aos homens dá humanismo: o livre arbítrio. E é por quererem pensar e decidir e actuar com a certeza de que são humanos emancipados, que os povos da Terra gritam nas ruas desse mundo de senhores e tiranos, quais esclavagistas de almas e de consciências. Os povos da Terra anseiam mudança. E eles sabem. Eles sabem que o poder é fugaz.

Conhecem o ódio, mas também a esperança. E não só os tunisinos, egípcios, líbios, marroquinos, sudaneses, iemenitas, bareinitas, argelinos e sauditas bradam contra esses homens infectos que ultrajam os cânones revolucionários franceses (mas que ao mundo pertencem) da liberdade, igualdade e fraternidade. Que se olhe para a Europa! Não a de Maquiavel, mas a do Euro. Que se olhe para a América! Não a das oportunidades, mas a que é irresponsável e prepotente. Que se olhe para a Ásia! Não a da cultura milenar, mas a que se maquilha de ocidental para o que mais lhe apraz. Quantos povos vivem sob os ditames das fortalezas que os rodeiam e os esmagam? E quantos gritam Basta!, mesmo quando esses senhores iluminadamente sombrios conspiram para que as vozes de revolta passem por mudas? Quantas tunísias são precisas? Quantos egiptos existirão ainda? Quantas líbias derramarão mais sangue?

Perguntas. Sem respostas claras.

Disse Maquiavel que «a melhor fortaleza que existe está em não ser odiado do povo». Pois serão o ódio e, acima de tudo, a esperança, que derrubarão todas as fortalezas da Terra.

Só então os povos poderão seguir, livres, rumo ao destino que os espera.

Samuel Pimenta escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.