O piano soava triste, enchendo a casa com uma melodia de mágoas. Era um choro inquieto, tocante. As paredes, mudas de respeito, escutavam o gemido assaz sofrido que melancolizava o salão, calando-se perante a dor das teclas brancas e pretas que, pausadamente, se moviam ao toque das mãos finas e pálidas de uma mulher.
A pianista debruçava o corpo sobre o piano, qual abraço unificador, formando o cordão que imiscui músicos e música e que os tornam num só. Piano e pianista eram partes de uma essência una, a essência que define a arte das notas musicais.
De cabeça curvada e olhos fechados, com a proximidade singular dos que se amam e conhecem, a pianista sorria misteriosamente para o piano. Não era um sorriso logicamente compreensível, os sorrisos não existem para serem lógicos. Mas a pianista sorria, sorria ilogicamente como todos os artistas, dotados dessa aparente falta de razão que tanto os engrandece, por amarem incondicionalmente a sua arte. E todos sabem que amar não obedece a uma conduta logicamente regrada. Pena que não se ame mais! Pena que não se seja mais ilógico.
O piano soava triste. E, ainda assim, a mulher sorria.
Era o sorriso de uma pianista que amava um piano. Era o sorriso de uma mulher que amava uma parte de si. Era o sorriso de um ser humano realizado. E quantos de nós sorriem como as tantas pianistas que amam pianos?
Quantos de nós sorriem?
O piano soava triste. E com ele uma pianista sorria.
Sorria uma mulher feliz.
Samuel Pimenta escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.